sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Matéria do Estadão - 10/05/2006


Confissões de Benicio, o mestre das pin-ups

Célebre por desenhar mulheres sexies, ele fez mais de 300 cartazes de cinema
Jotabê Medeiros

O mundo começava nos seios de Jandira. Depois, surgiram outras peças da criação: surgiram os cabelos para cobrir o corpo (às vezes, o braço esquerdo desaparecia no caos). E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo. E surgiram sereias da garganta de Jandira.

É assim que começa o poema Jandira, do poeta Murilo Mendes. O ilustrador gaúcho José Luiz Benicio da Fonseca (ou simplesmente Benicio) parece ter nascido predestinado a cumprir a visão do poeta. Autodidata, aos 14 anos, em sua Porto Alegre natal, ele fez seu primeiro trabalho. Desde então, em 53 anos de carreira, tem se esmerado na arte de aprimorar aquilo que os homens consideram a obra-prima de Deus: a mulher..

Benicio parece ter o dom de desenhar mulheres ainda mais perfeitas do que aquelas que o Criador nos confiou. Nos mais de 300 cartazes que fez para o cinema nacional, tem uma obra que poderíamos definir como "covarde": é o autor daquela Vera Fischer avassaladoramente irresistível no cartaz de A Super Fêmea, de Anibal Massaini Neto.
Leila Diniz, Kátia D'Angelo, Marlene Silva, Eva Wilma, Maria Lúcia Dahl: ninguém jamais viu mulheres daquele jeito. Tanto quando Zéfiro (mas sem o grau de penetração deste, com o perdão do sentido ambíguo), ele contribuiu para um tipo de educação erótica da imaginação nacional..

Completando agora 53 anos de carreira, Benicio é considerado o nosso Norman Rockwell (1894-1978), ilustrador americano que elevou a atividade a um patamar de excelência celestial. Mas, como todo santo de casa, Benicio precisou de uma vida inteira para encontrar alguém que o conduzisse ao seu lugar no pódio da ilustração nacional..

O jornalista e escritor Gonçalo Junior é essa alma incansável. Ele conta agora a história do ilustrador gaúcho e sua arte no recém-lançado Benicio - Um Perfil do Mestre das Pin-Ups e dos Cartazes de Cinema (Editora Cluq, 224 páginas, R$ 49,90)..

"É um livro muito bom, ele tirou leite de pedra", diz ao Estado, com infinita modéstia, o ilustrador, que vive no Rio de Janeiro desde 1953 (tornou-se tricolor duplo, torcedor do Grêmio e do Fluminense). Benicio fala como se sua vida tivesse sido pacata. Não é tão verdade, como veremos no livro de Gonçalo. São deles os cartazes dos clássicos Dona Flor e Seus Dois Maridos, Independência ou Morte e do recente Pelé Eterno. Benicio desenhou todos os 31 cartazes dos filmes dos Trapalhões entre 1974 e 1991. Parecia foto, mas não era. Era Benicio..

Fez capas das revistas Playboy, Veja, Ele&Ela, Status. Fez folhinha de calendário para a Shell, nos anos 60. Desenhando 2 mil capas da espiã Brigitte Montfort, em 1963, para a editora Monterrey, em 1963, ele ajudou a companhia a construir um dos maiores fenômenos editoriais do mercado na época. Brigitte Montfort, uma das mulheres que só existiram na sua cabeça (a musa cujo desenho ilustra esta página), muitos diziam que era uma mistura de Marlene Silva e Monique Evans..

Sua versão de Giselle, a Espiã Nua Que Abalou Paris, de David Nasser (1917-1980) virou um sucesso absurdo nas bancas, chegou a vender 500 mil exemplares de cada revista. O êxito era atribuído aos desenhos de Benicio..

Quando foi contratado para desenhar a campanha do Copacabana Palace, sua escolha foi definida assim por Jorginho Guinle. "(Queríamos) um ilustrador que pudesse bem caracterizar muitas das curvilíneas cariocas que costumam freqüentar a piscina do Copa.".

"Muitas vezes as fotos não eram boas, então a atriz tinha de posar para mim", ele conta. Como produziu muito principalmente nos anos 70, era de se esperar que ele tivesse tido problemas com a censura, mas não. "Eu me policiava muito, sabia que não podia dar murro em ponta de faca. Mas de vez em quando eles me pediam para 'levantar' um pouco uma cueca ou uma calcinha, dizendo que estavam aparecendo pêlos pubianos", diverte-se..

Com todo esse toque erótico, por que Benicio nunca fez revistas pornô? Teria ficado rico. "Nunca tive vontade nem chance. Não é preconceito, não", afirma. Também nunca fez HQs. "Considero que, para fazer HQ, tem que ter uma habilidade específica, que eu não tenho.".

Ele não nega a influência de Norman Rockwell, mas também cita outros mestres que fizeram eco no seu trabalho. "Aqueles pintores conhecidos como impressionistas, Lautrec, Serrat, Monet. São os trabalhos mais próximos da ilustração, no meu entender. Eles descobriram uma forma mais alegre, diferente, de enxergar a realidade, sem nunca se afastar muito da realidade.".

O ilustrador, hoje com 70 anos, não se furta a comentar o fabuloso universo das pin-ups atuais, que graças a Deus se recicla continuamente. Ana Paula Arósio? "Não tem sex-appeal, é cândida, ingênua." Gisele Bündchen? "É bonita, mas não é da minha geração. Ela é muito batida para o meu gosto. Sei que a estética moderna é diferente, mas, apesar do rosto muito bonito, o corpo não me chama a atenção." Nicole Kidman? "Carinha meio vulgarzinha, tem uma cara muito estereotipada.".

Pô, o homem é demasiado exigente. Então, quem é que faz a cabeça do ilustrador nos dias atuais? "Luana Piovani. Cláudia Raia. Elas são sexies. Sabe uma que eu acho excepcional, diferente, realmente bonita? Sharon Stone. Tem um charme diferente, daquele tipo que a Marilyn Monroe tinha.".

Entre os desenhistas mais cultuados do gênero erótico, ele surpreende. "Não conheço Milo Manara, desculpe. Gosto do Serpieri, esse é bom.".

O cartaz de A Superfêmea, com Vera Fischer, certamente foi um dos trabalhos que sedimentaram sua fama. Há quem aponte também o cartaz de Dona Flor. "Não acho tão excepcional. Na minha opinião, o cartaz de Independência ou Morte é mais elaborado, mais trabalhoso." Tarcísio Meira em pessoa posou para o cartaz, não sem antes pedir que o ilustrador reduzisse um pouco suas olheiras, acentuadas naquele dia.
Não é fácil achar o livro de Gonçalo Junior sobre o trabalho de Benicio. Em São Paulo, a Livraria Comix (Alameda Jaú, 1.998, tel. 3061-3893) possui exemplares

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